Mais de uma vez, foi mencionada aqui a advertência do secretário-geral da ONU, Kofi Annan: o problema central do nosso tempo não é o terrorismo; são as mudanças climáticas e os padrões insustentáveis de produção e consumo no mundo, além da capacidade de reposição da biosfera planetária; essas duas questões é que ameaçam a própria sobrevivência da espécie humana. E, de fato, é difícil que se consiga discutir qualquer questão sem que, por algum ângulo, não se recaia na moldura desenhada por Annan. Ainda mais quando a disputa global por recursos e serviços naturais (base física da produção e do consumo), juntamente com a polêmica sobre as matrizes energéticas – por causa das mudanças climáticas favorecidas pelas emissões de poluentes gerados por fontes que dependem de combustíveis fósseis – ocupa a cada dia mais espaço na comunicação.
Washington Novaes
Goiás não escapa a esse quadro. Tome-se, por exemplo, a recente discussão provocada pela decisão do prefeito de Rio Verde, de reduzir por decreto, para 10% dos 500 mil hectares agricultáveis do município, a área que poderá ser ocupada ali pela cultura da cana-de-açúcar (hoje em 15 mil hectares). O temor de que a expansão da cana venha desalojar e/ou inviabilizar no município outras culturas e gerar problemas em setores como o das carnes (que depende de pastos ou da soja para produção de rações para o gado bovino) fora manifestado, além dos produtores de soja, pela maior produtora industrial de carnes no Estado. Respondeu o setor da cana (onde a expansão do número de usinas de álcool no Estado está prevista das atuais 12 para 16 e em seguida para 28) que essa cultura hoje ocupa apenas 7% das áreas plantadas no Estado, enquanto a soja ocupa 61% e o milho 17%. O governo do Estado assegurou à indústria de carnes que não faltará espaço para as culturas de que ela depende, nem área para os pastos – lembrando ainda que em Goiás pelo menos 20% das pastagens estão degradadas e podem ser utilizadas com outras finalidades. No curso das discussões, foram mencionados ainda estudos em andamento para um zoneamento agrícola do Estado.
Uma típica disputa por serviços e recursos naturais, que implica também matrizes energéticas, já que quase todo o álcool se destinará a substituir diesel ou gasolina, para reduzir a emissão de poluentes. Há poucos dias ainda, o governo federal voltou a subir (agora de 20 para 23%) a porcentagem de álcool hidratado adicionado à gasolina – embora na verdade a razão principal não tenha estado na redução da poluição e sim na queda do mercado mundial para exportações de derivados da cana (o preço do açúcar caiu 26%), quando o País está produzindo 17,6 bilhões de litros de álcool por ano e 50 milhões de toneladas de açúcar. Sobrou cana, setor em que o Estado de São Paulo domina 59,5% da produção e o Nordeste 13,9%. A previsão é de que o consumo de álcool no País aumente 55% em seis anos.
Por outro ângulo, a questão goiana insere-se no quadro dos modelos e padrões de produção e consumo no mundo, já que a área da soja enfrenta problemas relacionados com mudanças climáticas, que levaram a uma redução do PIB da agropecuária goiana de 2,86% em 2004 (O POPULAR, 12/11/06), e com a baixa dos preços no mercado internacional (que estão levando a uma redução de 12% na área plantada na safra 2006/7). No País, na safra agrícola de 2005, a perda foi de R$ 10,6 bilhões (O Estado de S. Paulo, 23/11/06): a tonelada de soja caiu de R$ 854,48 em 2004 para R$ 424,06 no ano seguinte – num mercado francamente dominado por oligopólios de empresas e mecanismos de comercialização. As empresas não passam de meia dúzia a dominar mais de 60% do comércio total de alimentos no mundo. Os dois maiores mecanismos de comercialização, as bolsas de Chicago – que negociam US$ 4,2 trilhões anuais (mais de cinco vezes o PIB brasileiro) – estão em processo de fusão, para formar uma só bolsa com ativos de US$ 25 bilhões.
Esses oligopólios e mecanismos é que respondem por uma tendência, que já dura mais de meio século, de queda nos preços reais das commodities exportadas, e que se traduz na redução de 50% no seu valor real, segundo o recente relatório da Organização para a Agricultura e a Alimentação (FAO), da ONU – A Sombra Alongada do Gado, já mencionado neste espaço. Para compensar essa queda de preços e não perder receita na exportação de commodities, os países produtores, entre eles o Brasil, tiveram de aumentar suas vendas externas em 43% entre 1980 e 2004 – o que implicou forte expansão na área ocupada e na geração de problemas com recursos e serviços naturais (o estudo Living Planet 2006, do WWF, calcula em 25% o atual consumo de recursos e serviços naturais além da capacidade de reposição do Planeta). De acordo com o relatório da FAO, o Brasil é um dos países que mais sacrificaram florestas e outros biomas (como o Cerrado) para expandir a área plantada, principalmente com soja e milho destinados à produção de rações para o gado. E a expansão da produção projetada até 2030 dependerá em 80% de avanços na ocupação de novas áreas.
Por aí, mais uma vez a questão esbarra em mudanças climáticas, já que hoje 75% das emissões brasileiras que para elas contribuem se devem a mudanças no uso do solo, queimadas e desmatamentos, principalmente na Amazônia – e aí mais uma vez a soja e a pecuária têm forte contribuição para que o Brasil já seja o quarto maior emissor do Planeta.
Não é preciso juntar novos argumentos e informações. Esses bastam para evidenciar que não há como fugir às questões enunciadas por Kofi Annan. E quanto mais retardarmos discussões que se enquadrem nessa moldura, mais tenderão a crescer os problemas. E mais difícil será tentar resolvê-los à frente.
Washington Novaes é jornalista - O Popular
Quem é Washington Novaes
O jornalista Washington Novaes foi repórter, editor, diretor ou colunista em várias das principais publicações brasileiras: Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, Última Hora, Correio da Manhã, Veja e Visão. Atualmente é colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Popular (de Goiânia, onde vive).
Na televisão, foi durante sete anos editor-chefe do Globo Repórter e editor do Jornal Nacional, da Rede Globo. Comentarista de telejornais das Redes Bandeirantes e Manchete, além do programa Globo Ecologia. Realizou em 2001 para a TV Cultura a série de cinco programas Desafio do lixo, gravada em 9 países e 10 estados brasileiros, além do documentário Primeiro mundo é aqui, sobre biodiversidade.
Foi consultor do Primeiro Relatório Brasileiro para a Convenção da Diversidade Biológica, dos Relatórios sobre Desenvolvimento Humano da ONU, de 1996 a 1998, e sistematizador da Agenda 21 Brasileira - bases para a discussão.