Ainda no último domingo, nesta mesma página, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso advertiu: “Nada é mais ameaçador para a humanidade do que o ´efeito estufa` (...) E não estamos falando do futuro remoto: sinais claros já estão ocorrendo (...) Nenhuma questão é mais desafiadora e mais abrangente”. Só pode ser bem-vinda a advertência. Se o mundo da política e dos negócios não abrir os olhos para a questão, não haverá como enfrentá-la. Seja qual for o campo da discussão, seja qual for o problema.
Washington Novaes
Essa introdução vem a propósito das notícias das últimas semanas sobre a expansão da cultura da cana-de-açúcar no Estado e no País, para produzir álcool (etanol) destinado a servir como combustível (menos poluentes que os combustíveis fósseis). Segundo este jornal (2/3/2007), o número de usinas no Estado passará das atuais 15 para 37 até 2010, com a área plantada expandindo-se de 0,8% para 2%, para produzir 3,2 bilhões de litros anuais de álcool (800 milhões hoje) e 3 milhões de toneladas de açúcar (800 mil hoje). 30% do álcool serão exportados. Os empregos no setor passarão de 40 mil para 100 mil. Também no Estado, diz o Ministério da Reforma Agrária, estão sendo implantadas sete indústrias para produção de biodiesel. E tudo isso coincide com a esperada visita do presidente George W. Bush, envolvendo conversações entre os governos sobre o etanol.
O setor da cana-de-açúcar já vem em forte expansão. Suas exportações passaram de US$ 4,6 bilhões em 2005 para US$ 7,7 bilhões no ano passado. E vão continuar crescendo, principalmente com a perspectiva de a produção de etanol saltar dos atuais 17,5 bilhões de litros para 35,7 bilhões em 2012/13 (O Estado de S. Paulo, 21/2/2007). Este ano, a renda do setor deverá atingir R$ 20,2 bilhões (mais 11,4%), também com a entrada em cena de muitos dos grandes grupos que dominam o comércio mundial de alimentos e de insumos químicos para a agricultura, que responderão por parte das 73 novas usinas previstas, com investimento de US$ 14,6 bilhões (O POPULAR, 4/3/2007). E tudo isso quando o País já é o maior exportador de açúcar.
Será ilusório, entretanto, achar que por contribuir para a substituição de uma parcela do consumo de combustíveis fósseis, altamente poluidores e intensificadores do efeito estufa, por etanol, energia renovável e menos poluidora, a expansão se fará sem problemas e sem conflitos que precisam ser postos sobre a mesa – para que a sociedade se informe e participe de uma discussão em que todos os níveis de governo terão de envolver-se e que terá custos que ela, sociedade, terá de pagar.
Em Goiás mesmo, um desses conflitos já tem ocupado as páginas dos jornais, desde quando o prefeito de Rio Verde limitou, por disposição municipal, a 10% da área total do município a superfície possível de ser ocupada pela expansão da cana. E assim agiu diante da possibilidade de essa cultura substituir a soja e deixar sem abastecimento a produção e industrialização de carnes, em franca expansão no Sudoeste Goiano. É um conflito ainda em desenvolvimento, com questionamentos judiciais sobre a legalidade do ato municipal. Mas que traz de volta a discussão sobre as conseqüências de expansão semelhante nos Estados de São Paulo e Minas Gerais, com o avanço do Proálcool a partir da década de 70. Ali, tem-se alegado, as culturas de alimentos foram expulsas para mais longe (encarecendo seu preço, com repercussões sociais e econômicas); gerou-se desemprego (menos postos de trabalho que nas culturas desalojadas); surgiram problemas ambientais, em conseqüência da queimada da cana antes da colheita. Agora, mostra-se que naquelas duas regiões a soja perdeu 15,9% da área para a cana e perderá 30% na safra 2006/07 (O Estado de S. Paulo, 23/2/2007).
A cana-de-açúcar também está chegando a algumas áreas da Amazônia – já se vai inaugurar a primeira usina no Acre. E teme-se a repetição do que aconteceu com a expansão da soja, responsável por mais de 60% do avanço do desmatamento naquele bioma nos anos recentes. O mesmo temor está presente no caso do biodiesel. Como demonstrou a organização Friends of the Earth, 87% do desmatamento em florestas tropicais na Malásia entre 1985 e 2000 se deveu ao avanço das culturas de palmas. E estudos do WWF-Brasil, cujos resultados preliminares começam a ser conhecidos, mostram nas culturas de cana os problemas com erosão, contaminação do solo e dos recursos hídricos (por fertilizantes e pesticidas), derrubada de matas ciliares e poluição por queimadas. Outros estudos insistem na necessidade (esquecida, desde o Proálcool) de estudar e conhecer melhor os efeitos da liberação de aldeídos na queima do álcool (atuam como desfolhante, contribuem para formação de chuvas ácidas, podem afetar a saúde humana). Sem falar na chamada “exportação virtual” de água sem consideração dos custos ambientais e sociais, que ocorre não apenas no açúcar, mas também na soja e em outras commodities. Estudo recente da Fundação Heinrich Boll, da Alemanha (Agronegócio e biocombustíveis: uma mistura explosiva) diz que é preciso avaliar com muito cuidado os impactos da expansão nessa área, que pode levar à concentração da propriedade e da renda, à perda de florestas, à poluição do ar, do solo e da água, à redução de postos de trabalho na agricultura.
Na área do biodiesel, fortes críticas têm-se levantado à pouca ênfase dada à participação da agricultura familiar nos resultados, com os pequenos produtores limitando-se ao papel de fornecedores de matérias-primas a grandes indústrias esmagadoras (de mamona, dendê, soja, pinhão manso). O ex-ministro do Meio Ambiente e ex-secretário dessa área em São Paulo, José Goldemberg, tem lembrado ainda que ao atual custo de produção, de R$ 1,72 por litro, sem impostos, o biodiesel não tem condição de concorrer sem subsídios com o diesel a R$ 1,34 o litro. E esses subsídios terão de ser pagos por toda a sociedade (o que envolve várias outras discussões).
Para complicar ainda mais, começa a se tornar problemática a utilização do Mecanismo do Desenvolvimento Limpo (MDL), que permite a uma empresa de um país industrializado financiar, em uma nação “em desenvolvimento”, projeto que reduza emissões de poluentes e descontar essa redução de suas emissões próprias, para cumprir compromissos no âmbito da Convenção do Clima. Acontece que, desde meados do ano passado, o valor de uma tonelada negociada no MDL despencou de US$ 30 para menos de US$ 10 (está entre US$ 4 e US$ 5), por haver oferta maior que a demanda. Segundo o ex-economista-chefe do Banco Mundial, Nicholas Stern (que produziu contundente relatório sobre conseqüências econômicas das mudanças climáticas), para conseguir que a substituição de combustíveis fósseis por esse tipo de energia renovável leve à estabilização das emissões de dióxido de carbono nos níveis atuais, será preciso que a tonelada valha entre US$ 20 e US$ 50.
Pode parecer incômodo, desagradável ou inoportuno levantar todas essas questões num momento de euforia com a perspectiva de substituir combustíveis fósseis por outros derivados das biomassas – que pode ser uma alternativa importante para o Brasil e uma contribuição significativa para enfrentar mudanças climáticas. Mas não se deve avançar no escuro. É preciso medir tudo, avaliar tudo, ponderar. Pensar em zoneamento, em faixas de culturas, em proibição de novos desmatamentos, em controle de queimadas, em associação com a agricultura familiar. Antes de decidir.
Vale a pena até dar uma olhada no outro lado do mundo e ver que a China está-se vendo obrigada a baixar suas taxas de crescimento econômico para reduzir seus problemas ambientais.
Washington Novaes é jornalista - O Popular 08 03 2007